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(Público em Faro, 14 de Maio de 2009. Quantos telemóveis conseguem ver?)


Para que fique claro: gasto demasiado tempo a olhar para um telemóvel. Talvez não tanto como alguns, talvez mais do que outros, mas definitivamente mais do que eu acho plausível. Combato isso frequentemente e sou auto-disciplinado, mas acabo por olhar para aquele ecrã bem mais do que o absolutamente necessário. Timelines quase eternas, a renovarem-se com conteúdo, do mais sério ao mais bizarro, a velocidade a que tudo isto acontece e a disparidade completa de assuntos torna o ecrã altamente apetecível. No entanto, acabo sempre por concluir que quase todo o tempo passado a olhar para ele é inútil e que a percentagem daquilo que se aprende e que se comunica não é assim tão alta. Em plena pandemia, a tendência de perdermos ainda mais tempo com estes aparelhos tornou-se maior, embora tivesse ficado ainda mais claro para mim que o tempo esvai-se sem razão por aquele ecrã abaixo.


Posto isto, quero debruçar-me sobre um assunto que é particularmente sensível para quem faz dos palcos vida: a presença massiva de telemóveis em concertos. Faço isto há tempo suficiente para ter observado uma mudança de comportamento total ao longo dos anos. O advento da fotografia digital, dos telemóveis com câmara e especialmente a massificação global das redes sociais mudou o nosso comportamento de várias maneiras e, neste caso, transformando o espaço de um espectáculo num exercício constante de captura de imagens e selfies descontroladas.

Quando comecei a fazer concertos, a primeira coisa que via quando entrava em palco eram as caras de quem estava lá para nos ver. Hoje, entro em palco e sou bombardeado com telemóveis e flashes, sendo sempre o ponto em comum em todas as multidões que estão à minha frente. O facto de estarmos todos no mesmo local frente a frente não é suficiente, dividem-se as atenções entre aquilo que acontece no mundo real e aquilo que o ecrã capta. Como espectador, é igual. Cheguei a observar pessoas que viram concertos inteiros pelo ecrã de um telemóvel, mesmo estando a 10 metros do palco. E pergunto-me, porquê?

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(Público em Lisboa, 15 de Maio de 2009. Sem telemóveis.)


A sensação que tenho é que o mundo em directo parece não ser o suficiente. Não basta estar lá e presenciar o momento, é preciso fotografar, filmar, partilhar numa timeline. E a meio disso, ver se chegou um email novo, como está a timeline do Instagram, comentar um amigo no Facebook, talvez um swipe-right no Tinder ou descobrir quais as tendências no Twitter. A realidade passou a ser mais lenta e menos estimulante que a aventura espectacular que se passa nas redes, por mais luzes que se acendam, por mais alto que se toque. Algures no escuro de uma sala, há sempre um rosto iluminado pelo ecrã de um telemóvel, remetendo para segundo plano toda e qualquer acção em palco. Às vezes dou por mim lá em cima a pensar o que poderia eu fazer para obter a sua atenção de volta, penso em percorrer o palco nu ou trazer uns cães amestrados, mas isso só faria com que as câmaras se ligassem todas outra vez.


Antes de toda a pandemia acontecer, estava no segundo ano de uma digressão chamada "Radio Gemini Closer". A certa altura do espectáculo, descia até à plateia e sentava-me junto do público, lado a lado. Em 90% das vezes, havia sempre alguém sentado a 20 centímetros de mim a filmar-me. Quanto mais perto estou, mais depressa aparece uma câmara a um palmo da minha cara. Num momento que tem tudo para ser mais próximo, é colocada uma máquina entre nós. Uma das vezes brinquei com a pessoa e disse para todo o auditório: "Reparem como mesmo sentado ao seu lado, ele prefere ver-me no seu ecrã." Rimo-nos todos, inclusive a pessoa que filmava e avancei para a canção. Já a câmara, essa, nunca se desligou.

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(Foto de Martin Parr)


Hoje somos nós, finalmente, os heróis dessa espectacularidade a que chamamos vida. Mestres do photoshop, ases da selfie, retratamo-nos como aventureiros pelo mundo, que existe apenas como fundo para servir este enredo. E estar lá não chega. É preciso provas, para que não escape a ninguém nenhum dos episódios desta temporada magnífica.



David

PS - Fartos de ecrãs? 3 sugestões para livros mais actuais do que nunca, ideais para tempos de pandemia:


"1984", George Orwell

"Admirável Mundo Novo", Aldous Huxley

"Fahrenheit 451", Ray Bradbury



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Quando lancei o primeiro disco com os Silence 4, não fazia ideia que as minhas inquietações líricas fossem ressoar de forma tão forte a quem me ouvia do outro lado. Escrevi as canções para mim, como um desabafo, uma maneira de transformar algumas dessas inquietações em algo diferente, mais luminoso, mais criativo, mas mais tarde vim a descobrir que não estava sozinho. Há canções onde o que escrevo é mais ou menos óbvio, especialmente para quem possa identificar o mesmo estado de espírito que a atravessa. Um dos assuntos que sempre me fascinou (e fascina!) é a ideia de que todos temos um mundo interior gigante e misterioso. Que, de facto, nunca ninguém sabe bem o que se passa por lá, nem a pessoa que transporta esse mundo de um lado para o outro. Esse universo tem tanto de fascinante como de aterrador e por vezes levam-se vidas inteiras para conseguir vê-lo à luz do dia.


Perdi a conta às vezes que escrevi sobre isto. Todas as letras que escrevo são muito pessoais, embora não sejam exactamente auto-biográficas. Escrevo sobre o que me motiva, o que me impressiona ou comove, e a maior parte das vezes as letras estão ligadas a muitas outras pessoas, eventos e suposições. Acabam sempre por falar de mim, não de forma exacta ou factual, mas antes como um registo emocional do que efectivamente me impressiona. Relembro aqui algumas passagens:


"O silêncio deixa-me ileso e que importância tem?

Se assim tu vês em mim alguém melhor que alguém?"

"Eu não sei dizer", 1998


"And you're crazy if you think that I'll let you in

My sunshine and my rain

The thoughts I hide away

From all the world to see"

"My Sunshine and my rain", 2003


"Girl, you see me smiling

Girl, I'm singing words of joy to the world

Between the lines, it's written in a smile

Can't you hear a cry for love?"

"A Cry 4 Love", 2009


"And it feels like theres someone who's still waiting for me to come around

And I see your hands but its so hard to find your face in the crowd"

"It Feels Like Something". 2012


"Tenho tanto e tento,

Mas o que vai cá dentro só eu sei

E mais ninguém, ninguém, ninguém"

"Ninguém", 2017


Depois das canções saírem, especialmente aquelas que falam de universos interiores mais duros, fui sempre surpreendido com mensagens e abordagens que continham sempre o mesmo teor: "Sei bem do que falas nesta canção." Ao longo dos anos, comecei a perceber que, mesmo sem esse intuito inicial, tinha ido de encontro a alguns destes mundos difíceis e que uma canção, por mais pequena que possa ser, podia também ser um interlocutor, uma luz em dia escuro, uma ideia que afirmava sem medo "Eu também estou aqui". Sei-o melhor que ninguém porque a música foi sempre minha companheira em quase todos os momentos difíceis, assim como lá estava nos melhores momentos também. Como compositor e músico, tive a sorte e oportunidade única de ouvir as histórias de quem pegou nestas canções e as juntou à sua tábua de salvação para longe do lado mais lamacento da existência. Tenho a certeza que quase todos os compositores ouviram histórias semelhantes, com a música a exercer o seu papel como um retrato do que nos rodeia.


Todos nos debatemos com um mundo interior gigante e misterioso, não há como o negar. Uns têm mais facilidade em lidar com ele, outros atrapalham-se e perdem-se por lá. Uma coisa é certa: ninguém está sozinho. Tudo o que atravessamos, o que quer que seja, alguém já atravessou também. Não somos exclusivos na nossa dor ou alegria, muito pelo contrário, é o nosso denominador comum. Não somos perfeitos, não temos todas as soluções, nunca saberemos tudo. Mas estamos aqui todos juntos, o que nos coloca a responsabilidade de olharmos mais para o outro e de sermos livres de pedir ajuda sem que isso seja um peso.


As canções ensinaram-me que, por mais escuro ou claro que seja o meu pensamento e as minhas palavras, há sempre alguém do outro lado que sabe exactamente do que estou a falar. Assim é na vida também. Nunca estamos sós.


David


PS - Uma das canções mais bonitas que já eu ouvi sobre algumas destas inquietações chama-se "Lado Oposto" da Márcia. Fiz uma versão dela há uns anos, deixo aqui para quem quiser ouvi-la.


PS2 - Deixo aqui uma série de contactos úteis a esta discussão.


Centro SOS-Voz Amiga: 800 209 899 (16-24h)

Telef.: 21 354 45 45 - Diariamente das 16 às 24h

Telef.: 91 280 26 69 - Diariamente das 16 às 24h

Telef.: 96 352 46 60 - Diariamente das 16 às 24h

www.sosvozamiga.org


Conversa Amiga (entre as 15h e as 22h) - 808 237 327 (Número gratuito) e 210 027 159


SOS Estudante (entre as 20h e a 1h) - 239 484 020


Telefone da Esperança (entre as 20h e as 23h) - 222 080 707


Telefone da Amizade (entre as 16h e as 23h)




Passam hoje 4 anos desde a estreia do videoclip de "Ela Gosta de Mim Assim". Faço os meus vídeos há mais de 13 anos e, depois de fazer mais um, prometo sempre a mim próprio que é o último. Fazer vídeos é sempre uma faca de dois gumes: por um lado, quero muito fazê-lo e quero que a parte visual da canção seja uma extensão de uma ideia minha; por outro, o processo complexo de ter uma ideia que consiga efectivamente ser exequível em termos de produção é um desafio que me exausta sempre. Na minha cabeça, os vídeos começam sempre com loucuras impressionantes e depois vem o meu lado de produtor com uma cara muito seca que apenas diz "Não!". Fazer o cruzamento entre uma ideia e a plausibilidade de torná-la real é um equilíbrio muito ténue e desgastante.


Mesmo assim, parece que o lado das ideias continua a ganhar. Afinal, continuo a realizar os meus videoclips e a fazê-lo alegremente. E talvez seja porque, por vezes, acontecem verdadeiros milagres como aquele que acontece em "Ela Gosta de Mim Assim".


A ideia era simples: reproduzir na medida do possível todo o cenário e circunstância do vídeo de Paul Simon "You Can Call Me Al" e convidar o Bruno Nogueira para entrar comigo dentro desse videoclip. Não faço ideia de onde surgiu isto, mas atraía-me imenso poder entrar num vídeo que não o meu e transformá-lo noutra coisa. Talvez fosse o surrealismo dessa suposição, fazer algo que parecia impossível e, de uma vez só, fazer uma homenagem ao vídeo original e, de certa forma, habitá-lo no tempo presente.


Duas semanas depois, foi com choque que olhei para o cenário montado, praticamente igual ao original. Ia mesmo acontecer. E quando o Bruno chegou ao set, era óbvio para mim que íamos fazer algo, no mínimo, diferente. Já tinha trabalhado com ele algumas vezes e tinha visto as várias facetas do seu enorme talento como cómico, actor e escritor, por isso não foi surpresa a forma como transformou este pequeno espaço à sua maneira de forma tão brilhante. E o playback é tão convincente que dei por mim a explicar inúmeras vezes que não era o Bruno que cantava a canção (o que acabou mesmo por fazer no espectáculo de 20 anos nos Coliseus de Lisboa e Porto).

O Verão chega e com ele chega sempre esta canção e vídeo na minha timeline. Acho sempre apropriado ao momento e continuo a olhar para toda esta sequência com uma certa incredulidade: Fizémos mesmo isto?


Aparentemente, sim. E várias vezes, até ficar bem.


Façamos do Verão o melhor que pudermos. E porque são tempos diferentes, que não nos apertemos em portas ou noutro sítio qualquer. Mas que o celebremos com igual alegria!


David






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