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São muitos os meses que antecedem esta publicação, desde o momento em que tudo era um pedaço abstracto de sons e imagens até estar aqui à vossa frente. Uma viagem longa que culmina aqui, convosco.


A minha música sempre respondeu ao impulso das situações e pessoas que se cruzam na minha vida, estando desde sempre ligada a esse movimento constante que me empurra a escrever, imaginar, a criar um universo que dialogue com as questões dos dias, das horas ou de um minuto particular. Nos últimos dois anos, esse diálogo foi quebrado pelas regras do distanciamento social e afastou-me dessa conversa diária com os outros, uma interferência que me colocou num lugar inesperado e que fez surgir o que agora apresento.


Isolado do mundo normal, recusei-me a escrever sobre esse silêncio vago dos dias e resolvi abrir a porta para uma mansão há muito fechada, habitada por fantasmas e recordações do passado. Mais do que um exercício nostálgico, quis escrever canções que falassem de alguns momentos-chave pessoais e olhá-los à luz do presente. Dei por mim a visitar uma casa de espelhos distorcidos, a atravessar corredores em chamas, a encontrar velhos amigos e outras surpresas pelo caminho.


Quando escrevi estas canções, o universo visual delas era muito claro para mim e depressa percebi que era uma oportunidade única para levar a cabo um sonho antigo: construir um disco que pudesse ser uma experiência visual, uma aproximação possível ao meu universo criativo com todo o grau de caos e surrealismo que está presente em toda a música que faço. Desenhou-se assim este “Living Room Bohemian Apocalypse”, uma fantasia musical em imagens e sons que leva cada uma destas canções ao seu lugar de imaginação e mistério. Sete canções para sete episódios que contam a história desta viagem intensa a cada lugar musical abstracto.

A primeira canção/episódio foi um dos objectos artísticos que mais gostei de escrever nos últimos anos. No momento em que nada podíamos fazer senão isolarmo-nos, o meu impulso criativo foi no sentido contrário e escrevi uma canção que cavalga à beira do oceano sem uma direcção específica. Lembro-me de querer escrever uma canção que durasse horas, dias, que tentasse retratar o impulso do desejo e da descoberta, uma perseguição perigosa em direcção a uma luz desconhecida. O resultado foi “Chasing the Light”, um épico de quase 9 minutos que fala dessa insatisfação que me empurra desde o primeiro dia para uma estrada longa onde nunca se vê o fim. É uma mistura improvável de alegria, medo, coragem, determinação e loucura que me leva a acelerar constantemente por essa estrada, uma curiosidade pelo mundo que teima em permanecer à superfície ao longo de todos estes anos. O primeiro episódio do filme visita estas ideias através de vários talentos artísticos singulares e visita lugares do meu passado e presente, sempre sob o olhar pesado do tempo, aqui retratado com a urgência de um cronómetro que parece torná-lo ainda mais exíguo. É a porta de entrada desta mansão abandonada imaginada que começa agora a sua visita guiada pelo mundo real. Bem-vindos!

  • Feb 6, 2021

Se há coisa que o confinamento me trouxe foi a oportunidade de cumprir com muitas das minhas promessas vãs e organizar, finalmente, os meus arquivos. Os meus interesses são algo díspares e são muitas as caixas-mistério que encerram inutilidades que nem eu compreendo. E nada como uma pandemia global para solucionar cada uma destas contendas caseiras e ocupar o tempo da forma mais útil possível.


Numa dessas caixas, encontrei esta fotografia. E tão rápido como o flash que disparou no segundo que eternizou esta imagem, a memória destes dias e vivências voltaram à tona com inúmeras histórias e pormenores que explicam parte da minha personalidade actual. Afinal, não nos desenhamos quase por inteiro na adolescência? Este sou eu aos 18 anos na minha primeira aventura a sério fora da minha cidade natal, sem qualquer supervisionamento de pais ou outros adultos. Combinado em cima do joelho e à última da hora, 3 amigos resolvem ir até à Festa do Avante para ver os Pop Dell´Arte e posteriormente ir até à costa alentejana com sacos-cama e tenda às costas. Nunca tinha acampado na minha vida. Nunca tinha visto um concerto de grandes dimensões. Não havia telemóveis. Não tínhamos um carro. E, claro, o dinheiro era contadíssimo. E como é fácil de adivinhar para quem esteve numa situação idêntica, foi uma semana absolutamente incrível.


Mas fora das recordações pessoais que esta foto me trouxe, houve outras que me levaram a juntar os pontos da minha adolescência com esta imagem: a minha t-shirt. Aos 18 anos, esta tinha sido a peça de roupa mais cara que eu alguma vez tinha comprado, uma t-shirt demasiado grande para o meu corpo com a imagem de um homem que já tinha desaparecido há muito, o realizador Alfred Hitchcock. Namorei esta peça de vestuário durante semanas na montra de uma pequena loja de Leiria e comprei-a com dinheiro que fiz com pequenos trabalhos de fotografia. Hoje, ao olhar para ela, apareceram duas perguntas. "Onde está esta t-shirt?" foi a primeira, mesmo sabendo que, para meu desgosto, por esta altura deve estar num monte de detritos numa lixeira deste planeta. A segunda pergunta intrigou-me mais: "Porquê o Hitchcock?"



De todas as referências que podia usar ao peito, a figura de um homem peculiar, misterioso, absurdo e pouco ortodoxo foi a que escolhi. Não era da minha idade, não era músico, actor ou uma celebridade recorrente. Como aconteceu isto afinal? Tentei reconstruir a minha teia de interesses dessa altura na tentativa de explicar a minha admiração pelo Alfred, mas não consigo precisar como aconteceu. Tudo o que conhecia dele vinha apenas de um sítio, a televisão. Foi lá que vi o "Vertigo" (um dos meus filmes preferidos de sempre), "Os Pássaros", "Janela Indiscreta", "Intriga Internacional", entre outros. O facto de existirem apenas dois canais de televisão fazia com que as escolhas fossem mais simples e desde o primeiro filme que vi deste genial realizador, nunca perdia a oportunidade de ver outro. Dei por mim a pensar no impacto que este pequeno pormenor teve na minha vida adulta e que talvez deva a Hitchcock e aos seus filmes alguma da minha curiosidade pelo inusitado, a ideia do mundo como um lugar mais misterioso do que parecia aparentemente.



A reboque desta recordação, lembrei-me dos posters que tinha no quarto. Como não encontrava os fotografias que queria, passava tardes na loja das fotocópias a ampliar o máximo que conseguisse as fotografias que mais gostava. Foi assim que forrei as paredes com as imagens que me intrigavam na altura. Tinha uma série de fotos do Yousuf Karsh, um dos fotógrafos clássicos das estrelas mundiais dos anos 50/60 que tinha descoberto num suplemento de um jornal, e ao lado da minha cama a Audrey Hepburn convivia em silêncio com Ernest Hemingway enquanto Churchill conversava com George Bernard Shaw. Na porta habitava Buster Keaton, que olhava para um soldado desconhecido no desembarque da Normandia através da lente de Robert Capa. E algures por cima do estirador, Henri Cartier-Bresson presenciava o salto de um homem por cima da água enquanto pés e cães se misturavam no enquadramento de Elliot Erwitt.



Era com estas imagens que acordava e adormecia todas as noites da minha adolescência. E hoje, ao relembrar-me de todas elas, questiono-me o quanto me empurraram em sentidos completamente diferentes que uma pequena cidade como Leiria poderia supôr. Como um novelo de lã que se desembrulhava, todos estes universos, pessoas e ideias vinham de mãos dadas uns com os outros, levando-me a sítios que de outra forma não poderia imaginar a partir do meu quarto. Não estava confinado como hoje, mas não havia internet e tudo o que me chegava às mãos tinha de partir de um interesse anterior, uma espécie de corrente que insistia em não quebrar. De outra maneira, talvez nunca tivesse entrado de rompante naquele pequeno cinema de província para descobrir o Spike Lee (sobre o qual já escrevi aqui). Ou talvez nunca tivesse conhecido o universo do ainda-mais-misterioso David Lynch, que por sinal tinha uma canção dos Pixies no seu filme "Eraserhead" e que me mostrou a Isabella Rossellini pela primeira vez. E uma daquelas curiosidades raras, uma das primeiras canções dos Silence 4 (que nunca chegámos a gravar mas que tocámos ao vivo algumas vezes) chamava-se...Isabella Rossellini.


Volto a olhar para esta fotografia antiga, a meio de uma aventura juvenil pelo país fora entre autocarros, tendas e concertos, e penso que nem nos meus sonhos mais absurdos poderia supor o que estava para vir. Se tivesse uma máquina do tempo e fosse até lá dizer-lhe, provavelmente iria achar tudo demasiado peculiar, misterioso e absurdo, como o senhor que ilustrava a minha t-shirt. Há partes de nós que mudam muito ao longo da idade, que negam ou reinventam o que já fomos, mas gosto de acreditar que há outras que permanecem intactas para sempre, protegidas do tempo e dos diferentes cenários. O que gostaria de manter deste rapaz é a sua enérgica vontade de ser surpreendido pelos mistérios do mundo, o eterno desenrolar do novelo que liga o seu tempo ao meu. Por mais que o desenrole, o novelo mantém sempre o mesmo tamanho nas minhas mãos. E para não me esquecer de como tudo funciona, talvez devesse revisitar todo o cinema de Hitchcock, de fio a pavio. Será sempre mais fácil do que encontrar outra t-shirt destas numa loja da moda...ou ainda haverá por aí clientela juvenil com uma queda para idolatrar velhos génios desaparecidos?



  • Dec 19, 2020

E sim, chegou aquela altura do ano! Foi um ano malvado, caótico, como nunca nenhum de nós esperou e, como tal, achei que o vídeo/canção deste Natal devia retaliar de forma surrealista e sórdida estes últimos meses. 2020 atirou-nos para dentro de casa, longe de multidões, a querer amansar a loucura e alegria que é estar vivo. Vai daí, respondo este ano com uma das canções de Natal mais tolas de sempre, para mostrar a 2020 que é difícil dobrar o espírito humano, especialmente quando esse espírito está determinado em não largar toda a tolice que o habita.

Que cantemos sempre e que continuemos a protegermo-nos, uns aos outros, como uma colectividade musical de ukuleles e harmónicas que insiste em ensaiar as suas canções de amor à chuva.


FELIZ NATAL E QUE VENHA DAÍ UM ANO FELIZ! MUITA SAÚDE, ESPERANÇA E ALEGRIA!


Grande abraço!


David Fonseca


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