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Ouvir e fazer música são duas actividades completamente distintas e com fins radicalmente diferentes. Ninguém começa a fazer música sem se apaixonar pelo acto de ouvi-la em primeiro lugar. No meu caso, a música invadiu o meu mundo na adolescência (e não é sempre assim?), a preencher os vazios da existência, a acalmar as tempestades emocionais, a falar comigo como se soubesse o que eu penso. Não tenho dúvidas que, sem a música, não seria a pessoa que sou hoje. Sem o impacto brutal que as canções tiveram no meu crescimento, eu seria uma pessoa diferente e menos consciente do mundo que me rodeia. Talvez o cinema tenha tido o mesmo papel, mas isso fica para outra publicação.


Quando comecei a escrever música, entendi imediatamente que era uma missão totalmente diferente. Enquanto que ouvir música era um exercício de prazer, de encontro com o outro, compôr música colocava-me no plano oposto, mais angustiante e revelador. A criação pressupõe uma abertura sobre algo que, até ali, estava escondido de todos, revelando mais do que era habitual no meu dia-a-dia. É um segredo que se coloca numa caixa e se deixa à porta de alguém, com todo o pânico que isso envolve. O processo é algo mágico: começa-se com silêncio, uma folha em branco e atira-se barro à parede até alguma coisa ficar por lá. Nunca se sabe bem o que está certo ou errado, não existem instruções ou fórmulas, apenas instinto a desdobrar-se em tentativa após tentativa de falhanços consecutivos. Até acertar.


As primeiras canções eram acompanhadas de uma certa dose de espanto e vaidade. Quando se faz algo pela primeira vez, o factor novidade é crucial no processo, tornando-o mágico a cada pequena descoberta. Mas hoje, depois de tantos anos de canções, pergunto-me: o que me faz voltar às canções? Agora que o factor novidade está esbatido por tanto barro na parede, o que me motiva afinal para continuar?


Na realidade, fazer canções não é muito diferente de muitas coisas na vida. Ao longo do tempo, o meu processo mudou dezenas de vezes, adaptando-se ao presente e ansiando pelo futuro. Aquilo que me motiva a escrever e compôr é diferente do que me fez começar, mas continua a persistir uma novidade difícil de explicar. Quando avanço para esse plano abstracto da composição, volto sempre a uma certa inocência, como se qualquer coisa pudesse acontecer, gigante ou pequena, como se tudo ainda estivesse por começar.


Na vida é igual. Como os miúdos que fotografei há anos nos Açores a mergulhar para o mar toda a tarde, nunca me pareceu que o seu entusiasmo e espanto desaparecesse ao longo do dia. Por mais que saltassem para o oceano, a sua alegria permanecia intacta, mesmo que estivessem a repetir o mesmo processo a cada dez minutos. Talvez porque o melhor mergulho de todos só possa ser o próximo e nunca o anterior.


Deixar desaparecer esse espanto juvenil no furacão aborrecido da vida adulta é um erro frequente em qualquer existência. No meu caso, combato-o da melhor forma que aprendi: navego por canções que nunca ouvi e vou avançando por elas como quem procura uma resposta. Hoje demora mais tempo, talvez esteja mais exigente, mas acabo sempre por encontrar algo que me devolve a sensação de descoberta e aventura. E é uma questão de tempo até estar agarrado ao silêncio e ao papel em branco na ânsia que algo mágico possa acontecer outra vez.


E como os miúdos, subo outra vez ao paredão e salto para a água salgada.


David



(Público em Faro, 14 de Maio de 2009. Quantos telemóveis conseguem ver?)


Para que fique claro: gasto demasiado tempo a olhar para um telemóvel. Talvez não tanto como alguns, talvez mais do que outros, mas definitivamente mais do que eu acho plausível. Combato isso frequentemente e sou auto-disciplinado, mas acabo por olhar para aquele ecrã bem mais do que o absolutamente necessário. Timelines quase eternas, a renovarem-se com conteúdo, do mais sério ao mais bizarro, a velocidade a que tudo isto acontece e a disparidade completa de assuntos torna o ecrã altamente apetecível. No entanto, acabo sempre por concluir que quase todo o tempo passado a olhar para ele é inútil e que a percentagem daquilo que se aprende e que se comunica não é assim tão alta. Em plena pandemia, a tendência de perdermos ainda mais tempo com estes aparelhos tornou-se maior, embora tivesse ficado ainda mais claro para mim que o tempo esvai-se sem razão por aquele ecrã abaixo.


Posto isto, quero debruçar-me sobre um assunto que é particularmente sensível para quem faz dos palcos vida: a presença massiva de telemóveis em concertos. Faço isto há tempo suficiente para ter observado uma mudança de comportamento total ao longo dos anos. O advento da fotografia digital, dos telemóveis com câmara e especialmente a massificação global das redes sociais mudou o nosso comportamento de várias maneiras e, neste caso, transformando o espaço de um espectáculo num exercício constante de captura de imagens e selfies descontroladas.

Quando comecei a fazer concertos, a primeira coisa que via quando entrava em palco eram as caras de quem estava lá para nos ver. Hoje, entro em palco e sou bombardeado com telemóveis e flashes, sendo sempre o ponto em comum em todas as multidões que estão à minha frente. O facto de estarmos todos no mesmo local frente a frente não é suficiente, dividem-se as atenções entre aquilo que acontece no mundo real e aquilo que o ecrã capta. Como espectador, é igual. Cheguei a observar pessoas que viram concertos inteiros pelo ecrã de um telemóvel, mesmo estando a 10 metros do palco. E pergunto-me, porquê?

(Público em Lisboa, 15 de Maio de 2009. Sem telemóveis.)


A sensação que tenho é que o mundo em directo parece não ser o suficiente. Não basta estar lá e presenciar o momento, é preciso fotografar, filmar, partilhar numa timeline. E a meio disso, ver se chegou um email novo, como está a timeline do Instagram, comentar um amigo no Facebook, talvez um swipe-right no Tinder ou descobrir quais as tendências no Twitter. A realidade passou a ser mais lenta e menos estimulante que a aventura espectacular que se passa nas redes, por mais luzes que se acendam, por mais alto que se toque. Algures no escuro de uma sala, há sempre um rosto iluminado pelo ecrã de um telemóvel, remetendo para segundo plano toda e qualquer acção em palco. Às vezes dou por mim lá em cima a pensar o que poderia eu fazer para obter a sua atenção de volta, penso em percorrer o palco nu ou trazer uns cães amestrados, mas isso só faria com que as câmaras se ligassem todas outra vez.


Antes de toda a pandemia acontecer, estava no segundo ano de uma digressão chamada "Radio Gemini Closer". A certa altura do espectáculo, descia até à plateia e sentava-me junto do público, lado a lado. Em 90% das vezes, havia sempre alguém sentado a 20 centímetros de mim a filmar-me. Quanto mais perto estou, mais depressa aparece uma câmara a um palmo da minha cara. Num momento que tem tudo para ser mais próximo, é colocada uma máquina entre nós. Uma das vezes brinquei com a pessoa e disse para todo o auditório: "Reparem como mesmo sentado ao seu lado, ele prefere ver-me no seu ecrã." Rimo-nos todos, inclusive a pessoa que filmava e avancei para a canção. Já a câmara, essa, nunca se desligou.

(Foto de Martin Parr)


Hoje somos nós, finalmente, os heróis dessa espectacularidade a que chamamos vida. Mestres do photoshop, ases da selfie, retratamo-nos como aventureiros pelo mundo, que existe apenas como fundo para servir este enredo. E estar lá não chega. É preciso provas, para que não escape a ninguém nenhum dos episódios desta temporada magnífica.



David

 

PS - Fartos de ecrãs? 3 sugestões para livros mais actuais do que nunca, ideais para tempos de pandemia:


"1984", George Orwell

"Admirável Mundo Novo", Aldous Huxley

"Fahrenheit 451", Ray Bradbury



Quando lancei o primeiro disco com os Silence 4, não fazia ideia que as minhas inquietações líricas fossem ressoar de forma tão forte a quem me ouvia do outro lado. Escrevi as canções para mim, como um desabafo, uma maneira de transformar algumas dessas inquietações em algo diferente, mais luminoso, mais criativo, mas mais tarde vim a descobrir que não estava sozinho. Há canções onde o que escrevo é mais ou menos óbvio, especialmente para quem possa identificar o mesmo estado de espírito que a atravessa. Um dos assuntos que sempre me fascinou (e fascina!) é a ideia de que todos temos um mundo interior gigante e misterioso. Que, de facto, nunca ninguém sabe bem o que se passa por lá, nem a pessoa que transporta esse mundo de um lado para o outro. Esse universo tem tanto de fascinante como de aterrador e por vezes levam-se vidas inteiras para conseguir vê-lo à luz do dia.


Perdi a conta às vezes que escrevi sobre isto. Todas as letras que escrevo são muito pessoais, embora não sejam exactamente auto-biográficas. Escrevo sobre o que me motiva, o que me impressiona ou comove, e a maior parte das vezes as letras estão ligadas a muitas outras pessoas, eventos e suposições. Acabam sempre por falar de mim, não de forma exacta ou factual, mas antes como um registo emocional do que efectivamente me impressiona. Relembro aqui algumas passagens:


"O silêncio deixa-me ileso e que importância tem?

Se assim tu vês em mim alguém melhor que alguém?"

"Eu não sei dizer", 1998


"And you're crazy if you think that I'll let you in

My sunshine and my rain

The thoughts I hide away

From all the world to see"

"My Sunshine and my rain", 2003


"Girl, you see me smiling

Girl, I'm singing words of joy to the world

Between the lines, it's written in a smile

Can't you hear a cry for love?"

"A Cry 4 Love", 2009


"And it feels like theres someone who's still waiting for me to come around

And I see your hands but its so hard to find your face in the crowd"

"It Feels Like Something". 2012


"Tenho tanto e tento,

Mas o que vai cá dentro só eu sei

E mais ninguém, ninguém, ninguém"

"Ninguém", 2017


Depois das canções saírem, especialmente aquelas que falam de universos interiores mais duros, fui sempre surpreendido com mensagens e abordagens que continham sempre o mesmo teor: "Sei bem do que falas nesta canção." Ao longo dos anos, comecei a perceber que, mesmo sem esse intuito inicial, tinha ido de encontro a alguns destes mundos difíceis e que uma canção, por mais pequena que possa ser, podia também ser um interlocutor, uma luz em dia escuro, uma ideia que afirmava sem medo "Eu também estou aqui". Sei-o melhor que ninguém porque a música foi sempre minha companheira em quase todos os momentos difíceis, assim como lá estava nos melhores momentos também. Como compositor e músico, tive a sorte e oportunidade única de ouvir as histórias de quem pegou nestas canções e as juntou à sua tábua de salvação para longe do lado mais lamacento da existência. Tenho a certeza que quase todos os compositores ouviram histórias semelhantes, com a música a exercer o seu papel como um retrato do que nos rodeia.


Todos nos debatemos com um mundo interior gigante e misterioso, não há como o negar. Uns têm mais facilidade em lidar com ele, outros atrapalham-se e perdem-se por lá. Uma coisa é certa: ninguém está sozinho. Tudo o que atravessamos, o que quer que seja, alguém já atravessou também. Não somos exclusivos na nossa dor ou alegria, muito pelo contrário, é o nosso denominador comum. Não somos perfeitos, não temos todas as soluções, nunca saberemos tudo. Mas estamos aqui todos juntos, o que nos coloca a responsabilidade de olharmos mais para o outro e de sermos livres de pedir ajuda sem que isso seja um peso.


As canções ensinaram-me que, por mais escuro ou claro que seja o meu pensamento e as minhas palavras, há sempre alguém do outro lado que sabe exactamente do que estou a falar. Assim é na vida também. Nunca estamos sós.


David


PS - Uma das canções mais bonitas que já eu ouvi sobre algumas destas inquietações chama-se "Lado Oposto" da Márcia. Fiz uma versão dela há uns anos, deixo aqui para quem quiser ouvi-la.


PS2 - Deixo aqui uma série de contactos úteis a esta discussão.


Centro SOS-Voz Amiga: 800 209 899 (16-24h)

Telef.: 21 354 45 45 - Diariamente das 16 às 24h

Telef.: 91 280 26 69 - Diariamente das 16 às 24h

Telef.: 96 352 46 60 - Diariamente das 16 às 24h

www.sosvozamiga.org


Conversa Amiga (entre as 15h e as 22h) - 808 237 327 (Número gratuito) e 210 027 159


SOS Estudante (entre as 20h e a 1h) - 239 484 020


Telefone da Esperança (entre as 20h e as 23h) - 222 080 707


Telefone da Amizade (entre as 16h e as 23h)




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