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"Só Depois, Amanhã" é o título da faixa de abertura de "Lost and Found - B Sides and Rarities", um disco digital que junta 16 temas até agora indisponíveis nos serviços de streaming. Com estreia a 24 de Julho, aqui fica em exclusivo e primeira mão para todos os membros deste site! A história desta canção e deste vídeo: "Só Depois, Amanhã" fez parte do lote de canções que fiz para "Futuro Eu", o meu primeiro disco inteiramente em português. No projecto inicial, o tema seria para ser tocado pela Filarmónica dos Marrazes, a aldeia onde cresci. Pedi ao Filipe Melo para fazer um arranjo para a filarmónica e chegaram mesmo a ensaiar a canção. Mas o tempo apertou e a certa altura percebi que não seria possível incluir esta gravação no disco no calendário já há muito estabelecido, pelo que tivémos que abandonar a ideia. Quando reuni as canções para esta colectânea de raridades, resolvi gravá-la no meu estúdio, sempre com a filarmónica no coração e com o intuito inicial presente.  Quando escrevi o tema, percebi que era atípico na minha escrita. A mim soava-me quase como um hino religioso, como aqueles que ouvia na igreja dos Marrazes quando era miúdo. E daí a imaginar uma filarmónica a tocá-lo foi um passo. A canção fala de saudade, de reencontro e de redenção, tudo num registo épico, lento e vertiginoso. Ao conceber o vídeo para a canção, era inevitável a imagem da filarmónica, e por isso resolvi convidar alguns dos seus elementos para estar à frente da câmara nesta sequência de imagens. E ainda espero que um dia possamos tocar todos juntos esta canção.








"Lost and Found - B Sides and Rarities" já está disponível em todas as plataformas de streaming, para ouvir apenas tens de seguir este LINK.


Um grande abraço,


David



(ESTREIA A 24.07.20)


Sempre que abro as gavetas, fico algo estupefacto com o universo que mora por lá. As canções que dormem nelas são reveladoras de outras histórias da minha vida, as que ficaram por falar, as que nunca viram a luz do dia. Dizem-me que têm abordagens mais alternativas, embora eu nunca percebesse muito bem o que isso quer dizer. Desde o início, a ideia da canção é o único ponto em comum para a minha escrita, sendo tudo possível dentro desta definição. Mais para um lado ou mais para o outro, mais longe ou mais perto, a certo momento da minha vida todas elas tentaram ser apenas uma coisa: uma canção.


Ao juntar todas estas canções espalhadas por gavetas ao longo da minha carreira, sinto que há uma intenção única que as une e que falam de coisas que nem sempre estão a descoberto na minha discografia. Talvez algumas delas sejam mais experimentais. Outras serão mais escuras, outras mais inesperadas. Sinto que estes temas fazem parte daquela parede para onde atirei o barro e ele colou de forma estranha e pouco habitual. E curioso como sou, persegui a sua forma e acabei com estas 16 canções nunca antes reunidas em disco. É uma porta diferente para o meu universo musical, a dar para um salão de artefactos e peças raras que andaram perdidas durante muito tempo. Agora que as encontrei, convido-vos a entrar. Sejam bem-vindos!


David


À medida que os anos passam, apercebo-me que as escolhas aumentam. Se recuar às férias da minha infância, não tinha muito por onde escolher. Se chovesse, ficava em casa. Se fizesse sol, juntava-me ao amigos lá fora. E se os desenhos animados transmitissem às 16 horas, sentava-me em frente ao ecrã porque era a única oportunidade que tinha de vê-los, não havia maneira de andar para trás ou carregar no pause.

Hoje, tudo é feito em modo multitasking. Na praia, apanha-se sol ao mesmo tempo que se comenta nas redes e se compra biquinis. No carro, navegam-se listas infinitas de podcasts, playlists e telefonemas. Em casa, precisaríamos de umas 20 vidas para dar conta dos canais de televisão disponíveis, assim como de todas séries e filmes. E sim, será mesmo impossível ler todos os livros que almejamos naquela lista sem fim. Afinal, o que estamos a aprender no meio deste mar de entretenimento?


Lembro-me quando tinha menos escolhas e o tempo era mais longo. Na realidade, não fossem as escolhas limitadas da minha adolescência, talvez nunca fosse um músico ou nem sequer me interessasse por nada em particular. As longas tardes de férias ou o tempo pós-aulas era um universo quase infinito de horas, minutos e segundos de tédio profundo numa cidade pequena como Leiria. Calculo que não fosse diferente noutras cidades, mesmo as maiores, afinal muito do tédio é provocado pela falta de imaginação da imberbe juventude.


Numa dessas tardes leirienses, passei pelo Cine-Bingo de Leiria (como o nome indica, metade cinema, metade bingo, já extinto há muito) e reparei no cartaz para o filme dessa tarde. Tinha um grafismo diferente, era apresentado como se fosse uma comédia tola e chamava-se "Não dês bronca". No entanto, eu tinha lida algures num jornal sobre este tal de Spike Lee, que diziam ser uma espécie de génio cinematográfico do momento. Desconfiado mas muito curioso, paguei o bilhete e sentei-me num cinema quase vazio, com a excepção de dois pares de namorados que se sentaram nas últimas cadeiras e que usaram o escuro da sala para praticarem outras actividades lúdicas. Não sei exactamente quais, nunca olhei para trás, mas definitivamente eu era o único a ver o filme naquela sessão. O que se seguiu foi esmagador.

O filme, no seu original "Do the right thing", iria marcar para sempre a minha paixão por cinema, pela narrativa, pelo trabalho de câmaras, fotografia, pelo desempenho dos actores e, acima de tudo, pela força da mensagem e ilustração de um contexto social que parecia longínquo e que, afinal, estava presente em todo o lado. Bruto e directo, o filme parecia um manifesto punk de desagrado ao que estava estabelecido, mas em vez das habituais guitarras eléctricas que já ouvia nos Sonic Youth e Pixies, era o hip-hop que marcava esta energia em contramão com um gigante "Fight the power" dos Public Enemy a pautar várias cenas. Saí do cinema em transe. Quem era este Spike Lee? O que tinha acabado de ver?

Passado um ano, passo pelo mesmo cinema e eis outro cartaz de Spike Lee, desta vez com o filme "Mo' Better Blues". Sem hesitar, fui vê-lo nessa mesma tarde. O pano de fundo era radicalmente diferente, uma narrativa que seguia o percurso de um trompetista de jazz, mas muita da temática racial e da quebra de estereótipos continuava fortemente presente. Saí do cinema, fui direito à loja de discos (sim, nesse tempo tinha de comprar o disco se queria mesmo ouvir a música) e comprei a banda sonora do filme. Foi assim que tomei contacto pela primeira vez com o universo do jazz, até ali apenas abordado em formato easy-listening. Agora ouvia o Branford Marsalis e Terence Blanchard quase todos os dias, a decorar todas inflexões da banda e a focar-me em diferentes instrumentos a cada audição. Tinha 17 anos e as poucas escolhas possíveis tinham-me levado a um mundo que nunca tinha suposto existir.


Voltando aos dias de hoje, o tempo passa e as escolhas não param de se multiplicar. É difícil escolher entre a próxima canção, oscilando entre algo que conheço bem e o que nunca ouvi. É um exercício complexo, mas é frequente reduzir as minhas escolhas. Reduzo-as a 2 ou 3 possibilidades e avanço destemidamente. Às vezes não acontece nada, entro por ruelas desinteressantes e perco um dia inteiro nisso. Mas às vezes dou por mim à porta do Cine-Bingo com a sensação que vai acontecer alguma coisa extraordinária. E por vezes, para meu pasmo, acontece mesmo.


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